doses de ansiedade que levamos para dentro de água

Sabemos todos as doses de ansiedade que levamos para dentro de água. Vestimos o fato rapidamente, remamos apressadamente para o outside e não descansamos até apanharmos a primeira onda. Mas uma coisa é o que levamos quando vamos surfar, outra, diferente, é o que trazemos quando saímos da água. Quando a experiência do surf termina, ou fica suspensa até uma próxima entrada. Alguns de nós sonham acordados com as ondas; outros, prolongam o prazer folheando revistas de surf ou consumindo repetidamente filmes; há, ainda, os que continuam a surfada em rodas de amigos, contando histórias invariavelmente exageradas. Mas todos, independentemente da forma como vivemos o depois do surf (que é também o antes da próxima surfada), partilhamos uma experiência física: o sal que trazemos connosco. Sal no corpo. Sal que transportamos do seu lugar, o Mar, para a Terra. É sobre essa experiência que tratará este espaço: “O Sal na Terra”.O título da coluna esconde, antes de mais, uma referência à expressão atribuída a Cristo no Evangelho segundo São Mateus (o Sal da Terra – capítulo 5, versículo 13). No contexto de “O sermão da montanha”, logo a seguir às bem-aventuranças, Cristo terá dito aos pescadores que o escutavam: “Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens”. Poderá parecer estranha esta remissão bíblica para uma coluna sobre surf, ainda para mais vinda de um ateu confesso. Mas será que é assim?Entre a multidão que ouvia o Profeta, encontravam-se muitos pescadores que conheciam bem a importância e a função do sal: conservar e purificar. E, acima de tudo, sabiam que o sal não ficava no mar, transformava-se, ia para a Terra para dar sabor à vida humana. E fazia-o com um tempero que não era efémero. Um tempero que se conservava, pois o sal arde mas não se consome. É esse o sentido último da metáfora do “Sal da Terra”: a busca de uma vida purificada e revigorada, a procura da plenitude. É também essa a ambição e parte da experiência de quem faz surf (ou dos viciados em fazer surf). Também nós, surfistas, sabemos bem qual é a importância do sal.Trata-se, primeiro de tudo, de um elemento constituinte e fundamental do lugar do surf: o mar. São as propriedades físicas do sal que, tornando os corpos mais leves, ajudam a prancha a deslizar, diminuindo a resistência ao movimento dos rails, permitindo que as quilhas se soltem, acompanhando-nos. Depois, é parte táctil da memória que trazemos da nossa actividade. Quando saímos da água, quando as ondas que apanhámos já se confundem em memórias simultaneamente mais ténues e mais distantes da realidade, o sal no corpo é o que faz perdurar a experiência, mantendo-a acesa no regresso à Terra.Quem faz surf sabe que a experiência das ondas não fica no mar, transforma-se, vai para a Terra e contamina a vida quotidiana. Ao fazê-lo acrescenta uma nova energia, revigorada, a tudo o resto e deita um novo olhar sobre as coisas “terrestres”. Além de que, naquilo que é o segredo mais mal guardado de todos os surfistas, a ideia de plenitude, de felicidade, confunde-se com o prazer de deslizar nas ondas. Surfista sem sal no corpo e sem poder apanhar ondas transforma-se num ser desorientado, meio perdido.O sal da água do surf dá sabor à vida (o bíblico “Sal da Terra”), mas é também, o sal que trazemos da experiência concreta de surfar que nos ajuda a olhar para as coisas quotidianas de um outro modo, através dos olhos da experiência do surf. O sal é o elemento de ligação física entre o surf e o resto da vida: “O Sal na Terra”O propósito desta coluna é procurar explorar o “tempero” que o surf acrescenta às vidas e olhar para as coisas que não são necessariamente do surf como se dele se tratassem. O sal será o instrumento de leitura para nos apropriarmos do que está na Terra, ainda que parecendo distante do Mar dos surfistas, mas que a ele pode pertencer. Afinal, é isso que todos os dias fazemos, quando olhamos para as coisas da Terra com os olhos permanentemente postos no Mar e nas ondas. É que uma vez experimentada a sensação de trazer sal no corpo, não mais nos conseguimos livrar dela. No Mar e essencialmente na Terra.texto publicado na coluna "Sal na Terra" da Surf Portugal